JOKER
O grito da multidão Órfã.
O Acontecimento cinematográfico do ano, ou pelo menos um dos, na minha análise, deu
vida a uma biografia desconhecida do icónico vilão da DC comics. Realizado por
Tood Phlips, teve estreia em Outubro e ainda permanece em sala. Na lista dos filmes mais vistos neste ano 2019
em Portugal, surge em 2º lugar, logo a seguir ao Rei Leão , o filme da Walt
Disney Pictures pensado para toda a família. JOKER, protagonizado por Joaquin
Phonix estreou a 3 de Outubro e até 25 de Dezembro teve 18 962 mil sessões com 895 903 mil espectadores, o
que faz uma receita bruta em sala de € 4.963.583, 79 euros.
O
Budget estimado desta co-produção EUA /Canada, segundo dados do IMDb, é de 55, 000, 00 dólares, e as receitas de
bilheteira ascendem a mais de 1,062,994, 002
dólares.
Arthur
Fleck, o personagem vivido por Joaquin Phonix, é um comediante palhaço que é
despedido na agência de eventos onde presta serviço a recibos verdes, a cidade
é Gotham City , a cidade que há muito conhecemos através desse outro ícone da
BD o Batman, o alter-ego, de Bruce Wayne, herdeiro de enorme fortuna que
decidiu dedicar a sua vida ao combate do crime.
Arthur
Fleck tem também um alter ego, o JOKER.
A
cidade vive o seu quotidiano de indiferença, miséria e crime. Arthur Fleck é
espezinhado por um grupo de adolescentes que também lhe destroem o cartaz com
publicita um produto comercial, cartaz que vai ter pagar do seu magro salário
de palhaço a horas, mas, mais do os pontapés no corpo, são os pontapés na alma,
a solidão que se acumula a cada hora do dia e da noite que passa. E pior, com o passar dos cresce também a
percepção da falta de perspectivas para
outra realidade mais quente e menos sofrida.
Arthur
Fleck tem necessidade de cuidados médicos, os serviços de saúde públicos em
Gotham City são degradantes como o é sempre a miséria, a sua saúde psíquica é
difícil. O riso descontrolado acontece nele, como a sucessão de atchim(s)
quando se está constipado, é um riso nervoso, que acaba por se tornar uma
idiossincrasia da sua persona. Vive com
a mãe numa decadência alimentada ansiolíticos. A mãe sonha com a ajuda do seu
velho amor o milionário Bruce Wayne,
escreve-lhe sucessivas cartas, sempre sem resposta. Bruce Wayne, é o pai de Arthur Fleck, segundo
ela ele é filho desse amor clandestino quando esteve empregada na mansão do
milionário.
Arthur
Fleck veste a sua personagem JOKER, é dessa forma, cara pintada de palhaço, que
se movimenta na cidade. Um dia no metro, em defesa de vida, mata um assaltante, a sua identidade não é
reconhecida, mas a sua figura,
comunicada através das tv e jornais encontra eco na população da cidade. Perante a onda de criminalidade da cidade, é
percepcionado como um herói.
Tenta
aproximar-se do pai, vai à grande
mansão, encontra junto do muro fronteira de grandes grades entre a propriedade
e a cidade o seu irmão, aquele que, sabe
o espectador, anos mais tarde será o herói Batman. É expulso, escorraçado da
mansão.
A
revolta interior cresce de forma paralela as manifestações violentas dos
habitantes da cidade contra as injustiças da governação da cidade. Os
manifestantes usam pinturas faciais iguais à sua, é um herói desconhecido.
É
convidado num programa de televisão de grande audiência - como sempre, magnifica interpretação de
Robert De Niro . Dispara em direto sobre
o apresentador.
O
filme rodado no Bronx, Harlem, Manhattan, é tudo menos uma comédia leve de
fácil digestão. O extraordinário - aparentemente - é a adesão dos públicos a esta narrativa que
trabalha o burlesco e o drama da marginalidade social nas grandes cidades da
falência do capitalista liberal.
JOKER
é cinema maior, se arte é sempre um tempo fora do tempo, o imaginário Comics, é necessariamente
território fértil. Este é um filme construído no novo regime estético do
cinema, assim denominado por Jaques
Ranciére, um regime em que o híbrido e o pós-dramático é o território da
materialidade narrativa. A narrativa
trabalha com o grotesco e o informe, que como sempre, tem de ser reconhecida na
materialidade, na realidade filmada, de forma sublime JOKER convoca e
coloca-nos perante o fascínio visual que trabalha o grotesco. O grotesco é uma potencia do humano sempre
presente e que, em tempos de crise, de transição de regime, tende a emergir com
toda a sua dimensão do espetacular. Captura dá-nos a ver a ansiedade vivida
individualmente e em grandes massas, sempre presente nos momentos de fractura,
de crises de sociedade.
JOKER
é o medo do não ser, a procura da forma para o reconhecimento da cidadania,
depois da falência da norma.
Freud
em 1919 no artigo Das Unheimliche,
usualmente traduzido em português por “O Inquietante”, tem uma abordagem psicanalítica na área da
estética. A análise parte dos contos
Hoffmann “ O Homem de Areia” e “Os Elixires do Diabo” . Freud investiga a etimologia da palavra Unheimlich, em diferentes línguas, a qual numa tradução literal é significa
desconhecido e, paradoxalmente, encontra por vezes o oposto imediato -
conhecido ou familiar. Conclui que atrás
de algo atrás de algo incompreensível ou atemorizante está sempre alguma coisa
familiar, refere então que existe sempre uma sombra no conhecido, um inominável
que foi afastado, reprimido.
É
esse reprimido que alimenta o arco dramático da personagem JOKER. É esse
desconhecido, conhecido, que permite a identificação mesmo que involuntária do
espectador com a vida na tela.
Estamos na presença do herói
relutante, este herói que chegou à tela e à literatura na década de 50, o anti-herói,
aquele que é herói, protagonista, não porque por decisão própria
enfrenta e supera um empreendimento extraordinário, o que quer dizer que se
coloca em ação por vontade própria, mas aquele novo herói dos quotidianos
modernos que é levado à ação por razões de contexto, movido pela circunstância
em que a realidade o envolve.
Estamos
também em dois tempos, o tempo do filme, ou melhor o tempo em que o filme se
passa, os anos da primeira grande recessão económica , e o tempo dos
espectadores, o tempo do “ espectador
emancipado” como escreve Jacques Rancière,
o público do cinema do final da segunda década do século XXI.
JOKER
é o cinema da Nova Hollywood neste tempo de hipercinema em que a qualificação
distintiva entre cinema arte e cinema indústria deixou de fazer sentido
enquanto julgamento estético e de modelo de produção.
São
raros, ainda assim bastantes, os heróis negativos que alcançam sucesso inegável
na multidão dos públicos, é ainda comum a ideia de que o filme para ter sucesso
comercial tem trazer bons sonhos, distanciar os públicos da realidade e nessa
distância oferecer a pílula da felicidade dourada. Basta falar com quem decide das programações
em sala e nas televisões, e até de quem tem responsabilidade nas decisões
políticas da cultura, e este axioma é apresentado como verdade em altar. JOKER prova de forma incontornável que os
senhores do marketing, muitas das vezes, são vendedores de segunda, convencidos
de que possuem ciência social e humana. Lembro
esse filme com o magistral ator, o Anthony Hopkins em “Silêncio dos Inocentes”
de 1991 - filme que ocupa a 74ª posição na lista dos 100 filmes do American
Film Institute.
Em
todo o caso, JOKER é um caso relevante e de especial interesse, e essa
singularidade resulta do eco da personagem indivíduo no colectivo, na
comunidade. Esta capacidade de contagio e a figuração da massa urbana em
conflito agudo, em batalha nas praças e ruas da cidade Gotham City no ecrã da
sala escura, a fazer eco de um tempo agora, um tempo hoje, onde coletes
amarelos em Paris, multidões em Barcelona, ou em Hong-Kong, por razões de ordem
diversa, confrontam de forma aberta o poder de polícia dos Estados.
JOKER
é um homem sem pai, um cidadão sem
representação da sua cidadania, vive uma
dupla orfandade, pessoal e social.
Neste
nosso tempo de vivências atomizadas, de vidas sem laços sociais comunitários, a
orfandade é um trauma que irrompe como vulcão.
De alguma forma o trauma da
orfandade é subterrâneo ao agitar das bandeiras,
seja as da libertação do género da âncoras dos comportamento socialmente bem aceites; mudanças de género, etc, ou bandeiras das vozes minoritárias das etnicidades ao acesso ao exercício do Poder, o
facto Édipo, permanece e é central na construção da afectividade humana.
A
libertação do pai, processo constitutivo do crescimento individual e social do
humano, tem sempre uma carga traumática,
e marca a relação do afecto com o próprio e com o mundo.
Freud
afirmou que o que move o mundo é o desejo inconsciente. Se a leitura das
manifestações do inconsciente no consciente quase sempre são de difícil acesso,
mais fácil é verificar que o desejo consciente, em certos casos mais até do que
a necessidade, é instrumental para as
dinâmicas da ação.
Rui Filipe
Torres - Cineasta, Jornalista.
Doutorando em
Estudos Artísticos - Estudos Fílmicos e da Imagem - FL -Universidade de Coimbra
Mestre em
Estudos Culturais Aplicados em Cinema -
Desenvolvimento de Projecto Cinematográfico - ESTC - Instituto
Politécnico de Lisboa.
Licenciado em
Ciências da Comunicação - ISCSP - Universidade de Lisboa