terça-feira, 31 de dezembro de 2019

JOKER O grito da multidão Órfã.



JOKER
 O grito da multidão Órfã.
O Acontecimento cinematográfico do ano,  ou pelo menos um dos, na minha análise, deu vida a uma biografia desconhecida do icónico vilão da DC comics. Realizado por Tood Phlips, teve estreia em Outubro e ainda permanece em sala.  Na lista dos filmes mais vistos neste ano 2019 em Portugal, surge em 2º lugar, logo a seguir ao Rei Leão , o filme da Walt Disney Pictures pensado para toda a família. JOKER, protagonizado por Joaquin Phonix estreou a 3 de Outubro e até 25 de Dezembro  teve 18 962  mil sessões com 895 903 mil espectadores, o que faz uma receita bruta em sala de € 4.963.583, 79  euros.
            O Budget estimado desta co-produção EUA /Canada, segundo dados do IMDb,  é de 55, 000, 00 dólares, e as receitas de bilheteira ascendem a mais de 1,062,994, 002  dólares. 
            Arthur Fleck, o personagem vivido por Joaquin Phonix, é um comediante palhaço que é despedido na agência de eventos onde presta serviço a recibos verdes, a cidade é Gotham City , a cidade que há muito conhecemos através desse outro ícone da BD o Batman, o alter-ego, de Bruce Wayne, herdeiro de enorme fortuna que decidiu dedicar a sua vida ao combate do crime.
            Arthur Fleck tem também um alter ego, o JOKER.
            A cidade vive o seu quotidiano de indiferença, miséria e crime. Arthur Fleck é espezinhado por um grupo de adolescentes que também lhe destroem o cartaz com publicita um produto comercial, cartaz que vai ter pagar do seu magro salário de palhaço a horas, mas, mais do os pontapés no corpo, são os pontapés na alma, a solidão que se acumula a cada hora do dia e da noite que passa.  E pior, com o passar dos cresce também a percepção  da falta de perspectivas para outra realidade mais quente e menos sofrida.
            Arthur Fleck tem necessidade de cuidados médicos, os serviços de saúde públicos em Gotham City são degradantes como o é sempre a miséria, a sua saúde psíquica é difícil. O riso descontrolado acontece nele, como a sucessão de atchim(s) quando se está constipado, é um riso nervoso, que acaba por se tornar uma idiossincrasia da sua persona.  Vive com a mãe numa decadência alimentada ansiolíticos. A mãe sonha com a ajuda do seu velho amor o milionário Bruce Wayne,  escreve-lhe sucessivas cartas, sempre sem resposta.  Bruce Wayne, é o pai de Arthur Fleck, segundo ela ele é filho desse amor clandestino quando esteve empregada na mansão do milionário.
            Arthur Fleck veste a sua personagem JOKER, é dessa forma, cara pintada de palhaço, que se movimenta na cidade. Um dia no metro, em defesa de vida,  mata um assaltante, a sua identidade não é reconhecida,  mas a sua figura, comunicada através das tv e jornais encontra eco na população da cidade.  Perante a onda de criminalidade da cidade, é percepcionado como um herói. 
            Tenta aproximar-se do pai,  vai à grande mansão, encontra junto do muro fronteira de grandes grades entre a propriedade e a cidade o seu irmão,  aquele que, sabe o espectador, anos mais tarde será o herói Batman. É expulso, escorraçado da mansão.
            A revolta interior cresce de forma paralela as manifestações violentas dos habitantes da cidade contra as injustiças da governação da cidade. Os manifestantes usam pinturas faciais iguais à sua, é um herói desconhecido.
            É convidado num programa de televisão de grande audiência -  como sempre, magnifica interpretação de Robert De Niro .  Dispara em direto sobre o apresentador.
            O filme rodado no Bronx, Harlem, Manhattan, é tudo menos uma comédia leve de fácil digestão. O extraordinário - aparentemente -  é a adesão dos públicos a esta narrativa que trabalha o burlesco e o drama da marginalidade social nas grandes cidades da falência do capitalista liberal. 
            JOKER é cinema maior, se arte é sempre um tempo fora do tempo,  o imaginário Comics, é necessariamente território fértil. Este é um filme construído no novo regime estético do cinema,  assim denominado por Jaques Ranciére, um regime em que o híbrido e o pós-dramático é o território da materialidade narrativa.  A narrativa trabalha com o grotesco e o informe, que como sempre, tem de ser reconhecida na materialidade, na realidade filmada, de forma sublime JOKER convoca e coloca-nos perante o fascínio visual que trabalha o grotesco.  O grotesco é uma potencia do humano sempre presente e que, em tempos de crise, de transição de regime, tende a emergir com toda a sua dimensão do espetacular. Captura dá-nos a ver a ansiedade vivida individualmente e em grandes massas, sempre presente nos momentos de fractura, de crises de sociedade.
            JOKER é o medo do não ser, a procura da forma para o reconhecimento da cidadania, depois da falência da norma.
            Freud em 1919 no artigo Das Unheimliche, usualmente traduzido em português por “O Inquietante”,  tem uma abordagem psicanalítica na área da estética.  A análise parte dos contos Hoffmann “ O Homem de Areia” e “Os Elixires do Diabo” . Freud  investiga a etimologia da palavra Unheimlich, em diferentes línguas,  a qual numa tradução literal é significa desconhecido e, paradoxalmente, encontra por vezes o oposto imediato - conhecido ou familiar.  Conclui que atrás de algo atrás de algo incompreensível ou atemorizante está sempre alguma coisa familiar, refere então que existe sempre uma sombra no conhecido, um inominável que foi afastado, reprimido.
            É esse reprimido que alimenta o arco dramático da personagem JOKER. É esse desconhecido, conhecido, que permite a identificação mesmo que involuntária do espectador com a vida na tela.
Estamos na presença do herói relutante, este herói que chegou à tela e à literatura na década de 50,  o anti-herói,  aquele que é herói, protagonista, não porque por decisão própria enfrenta e supera um empreendimento extraordinário, o que quer dizer que se coloca em ação por vontade própria, mas aquele novo herói dos quotidianos modernos que é levado à ação por razões de contexto, movido pela circunstância em que a realidade o envolve.

            Estamos também em dois tempos, o tempo do filme, ou melhor o tempo em que o filme se passa, os anos da primeira grande recessão económica , e o tempo dos espectadores,  o tempo do “ espectador emancipado” como escreve Jacques Rancière,  o público do cinema do final da segunda década do século XXI.
            JOKER é o cinema da Nova Hollywood neste tempo de hipercinema em que a qualificação distintiva entre cinema arte e cinema indústria deixou de fazer sentido enquanto julgamento estético e de modelo de produção.
            São raros, ainda assim bastantes, os heróis negativos que alcançam sucesso inegável na multidão dos públicos, é ainda comum a ideia de que o filme para ter sucesso comercial tem trazer bons sonhos, distanciar os públicos da realidade e nessa distância oferecer a pílula da felicidade dourada.  Basta falar com quem decide das programações em sala e nas televisões, e até de quem tem responsabilidade nas decisões políticas da cultura, e este axioma é apresentado como verdade em altar.  JOKER prova de forma incontornável que os senhores do marketing, muitas das vezes, são vendedores de segunda, convencidos de que possuem ciência social e humana.  Lembro esse filme com o magistral ator, o Anthony Hopkins em “Silêncio dos Inocentes” de 1991 - filme que ocupa a 74ª posição na lista dos 100 filmes do American Film Institute.
            Em todo o caso, JOKER é um caso relevante e de especial interesse, e essa singularidade resulta do eco da personagem indivíduo no colectivo, na comunidade. Esta capacidade de contagio e a figuração da massa urbana em conflito agudo, em batalha nas praças e ruas da cidade Gotham City no ecrã da sala escura, a fazer eco de um tempo agora, um tempo hoje, onde coletes amarelos em Paris, multidões em Barcelona, ou em Hong-Kong, por razões de ordem diversa, confrontam de forma aberta o poder de polícia dos Estados.
            JOKER é um homem sem pai,  um cidadão sem representação da sua cidadania,  vive uma dupla orfandade,  pessoal e social.
            Neste nosso tempo de vivências atomizadas, de vidas sem laços sociais comunitários, a orfandade é um trauma que irrompe como vulcão.
       De alguma forma o trauma da orfandade é subterrâneo ao agitar  das bandeiras, seja as da libertação do género da âncoras dos comportamento socialmente bem aceites;  mudanças de género,  etc, ou bandeiras das vozes minoritárias das  etnicidades ao acesso ao exercício do Poder, o facto Édipo, permanece e é central na construção da afectividade humana.
            A libertação do pai, processo constitutivo do crescimento individual e social do humano, tem sempre uma carga traumática,  e marca a relação do afecto com o próprio e com o mundo.  
            Freud afirmou que o que move o mundo é o desejo inconsciente. Se a leitura das manifestações do inconsciente no consciente quase sempre são de difícil acesso, mais fácil é verificar que o desejo consciente, em certos casos mais até do que a necessidade,  é instrumental para as dinâmicas da ação.

                                                                                                                                     
Rui Filipe Torres  - Cineasta, Jornalista.
Doutorando em Estudos Artísticos - Estudos Fílmicos e da Imagem -  FL -Universidade de Coimbra
Mestre em Estudos Culturais Aplicados em Cinema -  Desenvolvimento de Projecto Cinematográfico - ESTC - Instituto Politécnico de Lisboa.
Licenciado em Ciências da Comunicação - ISCSP - Universidade de Lisboa

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Variações – o barbeiro cantor









Na ante-estreia, Terça-feira, dia 20, na sala Manoel de Oliveira no cinema S. Jorge, com os seus 830 lugares quase ocupados na totalidade, o público convidado aplaudiu de pé a projecção do filme.
António Variações viveu a sua vida de cometa, luminosa e auto incendiária, numa Lisboa inventada, também por ele, entre Braga e New York, numa procura de pós-modernidade onde, o sangue e o brilho, a autenticidade do antigo é seiva que alimenta o presente. Fez notar com a sua postura de excesso que a ourivesaria das mulheres de Viana de Castelo que tem a sofisticação e a arte necessária a qualquer capa da Vogue. Ou que na música tradicional de Mirandela vive a pulsão erótica e radical de uma força telúrica capaz de cabeça de cartaz se tocada no MAAT de New York.
Viveu numa Lisboa que inventava a sua movida num alinhamento próximo com uma Madrid mi mata, num tempo em que Nova Iorque era a cidade mítica da vanguarda artística. Uma Lisboa ainda distante das rotas do turismo de massa da actualidade, pré-Internet, uma cidade-aldeia onde uma tribo relativamente alargada de gente com pequenas tribos dentro se movia, divertia, delirava, trabalhava, vivia.
Um tempo de excesso depois de dezenas anos de uma Europa e de um Portugal com peso excessivo nos corpos e nas vidas pela cinzenta nuvem da guerra que arrasou cidades e de um tempo colonial que findava por cá há pouco.
A cidade tinha um centro, chamava-se Frágil, um bar com pista de dança na rua da Atalaia que abriu em 1982, uma espécie de centro do mundo, um mundo de artistas, professores, alunos, cineastas, actores, designers, jornalistas, políticos, bailarinos, cozinheiros, pilotos, escritores. Um mundo pequeno, mas com ramificações ao mundo todo. Apesar dos excessos, na pista, nos balcões e nas casas de banho, era um lugar confortável, onde o desejo tinha no corpo das artes e da matéria do mundo a necessária presença para que os corpos não se separem do pensamento.
Outros lugares de excesso mais direccionado, não muitos, davam abrigo a tribos mais específicas em particular na sua orientação sexual, a actualmente conhecida comunidade LGBT. Era o caso do Finalmente Club, no n.º 38 da Rua da Palmeira que abriu a 2 de Maio de 1976, e onde todas as noites havia show de travestis. Talvez um dos mais hard na época fosse o Bric-à-Brac , também na zona do Príncipe Real, onde nas casas de banho, no final da noite, o esperma era visível colado nas paredes.
No filme temos o também o célebre Trumps, uma cave na esquina com a Imprensa Nacional, onde os corpos suados se reescrevem em ritmos eléctricos de dança urbana.
Foi neste bar que o Variações fez o seu primeiro concerto, e essa é uma das cenas recriadas no filme.
Mas o excesso do Variações é de outra natureza. É o excesso de um homem que vive a vontade de ser ele próprio e que encontra na canção a forma da sua expressão. O excesso de quem não cede a conformismos, nem a morais dominantes, nem a códigos normativos do que deve ser a arte ou a vida, não por arrogância, mas por verdade. A verdade da dor, a verdade do medo, a verdade da alegria, a verdade da ausência, a verdade do sangue.
Para António Ribeiro, o Variações, a figura icónica, que conheceu e com quem chegou a partilhar o palco, tem um nome e uma voz inesquecível, Amália Rodrigues.
Como refere João Maia, o realizador do filme, para Variações, a voz era o instrumento, não fica difícil entender o maravilhamento pela Amália.
Este filme é um BIOPIC, a film about the life a real person, e por isso, é também um filme musical.
O filme começa em Amares, a aldeia perto de Braga onde o protagonista nasceu, numa celebração Pascal, religiosa e popular, com banda e procissão, onde António ainda criança assiste com os irmãos e a mãe, mas já com o ar ausente de quem sonha. A cena seguinte é numa carpintaria da aldeia onde o jovem António trabalha e que tem como protagonista – a cena – um rádio numa parede que emite e a voz da Amália, os homens e o jovem António imobilizam os movimentos para uma melhor atenção das sonoridades e palavras cantadas. Na cena seguinte continuamos no universo rural e familiar e é-nos dito, pelo próprio jovem António em conversa com a mãe, da sua vontade de sair da aldeia e ir para Lisboa. A elipse temporal para o tempo da narrativa do homem adulto acontece na cena seguinte em que o jovem António, de forma deliberada se corta enfiando a talhadeira na mão. É um momento Luís Buñuel, é em respiração ofegante que António, homem adulto, acorda deste sonho e nos transporta da infância para o tempo da sua vida de músico e barbeiro, em Lisboa, Amsterdão, Nova York, Braga.
A composição do personagem pelo actor Sérgio Praia é a todos os títulos brilhante. Ancorado por um guarda roupa e maquilhagem sem falhas, uma fotografia de excelência, e numa realização em que a distância, posições e movimentos de câmara, são de uma eficácia total que nos fazem viver a emoção do actor. Sérgio Praia, transporta-nos ao mundo interior e exterior do personagem que interpreta de tal forma que acreditamos ser ele mesmo o António Variações.
Ao longo da narrativa somos transportados aos momentos da criação de temas que foram, e vão ser nestes meses do calendário próximo, icônicos, como: Toma o Comprimido, Teia, Perdi a Memória, Canção do Engate, Quero dar nas vistas.
A banda sonora do filme tem direcção musical de Armando Teixeira. João Maia procurou que mais do que uma banda sonora, que o filme desse corpo às ideias musicais que António Variações gravou com músicos amadores nos finais dos anos 70. E tudo correu de tal forma bem, que uma nova banda surgiu e o Sérgio Praia conjuntamente com os Balla lançam agora um disco editado pela Sony Music com os temas tocados e cantados no filme.
Variações é um projecto cinematográfico com inicio em 2000, teve apoio para escrita no ICA logo na fase inicial, mas o processo de desenvolvimento para chegar à rodagem foi demorado. A primeira versão do argumento demorou 2 anos a ser concluída, e a partir dessa altura foram perto de 15 anos para os júris e o ICA darem luz verde para a chegada às salas das imagens e dos sons.
Diz o João Maia: Interessei-me pelo Variações. Trabalhei durante muitos anos em lojas de discos, mas conhecia mal a obra dele e quando comecei a ouvir fiquei muito impressionado, até pelo facto de ele ter gravado o primeiro disco com 37 anos. E pensei; o que terá feito este homem até aos 37 anos para ter gravado um disco com esta idade e ter morrido aos 39?
Em brevíssima conversa com o realizador quisemos saber:
João, em quantos concursos de apoio à produção cinematográfica no ICA o filme esteve, até ter sido apoiado?Acho que só ganhei há oitava vez que concorri.
Foi útil, no teu processo criativo, os sucessivos adiamentos, quantas versões do argumento escreveste?O guião é praticamente o mesmo desde 2008. Essa era a 3ª versão. Antes disso só tinha concorrido uma vez. Em 2017 antes da rodagem fiz ainda algum trabalho sobre o guião.
No filme, não é identificada o HIV como a causa da morte do António Ribeiro?  A ideia generalizada é que foi uma das primeiras vítimas em Portugal do vírus HIV, que teve uma expressão aterradora com mais de 25 milhões de mortes no planeta.  A tua pesquisa não confirmou o HIV como causa da morte, ou decidiste não falar do assunto?O filme conta a história do António. Na altura ninguém queria usar a palavra HIV. Mas no filme está lá tudo.
Durante este tempo longo entre o início do projecto e a chegada a sala, escreveste outros filmes? Qual é o próximo?Uma adaptação de “Nome de Guerra” de Almada Negreiros
O filme, teve estreia simultânea em 60 salas no dia 22, esta proeza – é difícil a exibição cinematográfica de filmes portugueses em sala, só aconteceu com o filme Parque Mayer de António Pedro Vasconcelos (escrevi sobre o filme na edição do HM de 13 de Dezembro de 2018, filme que fez 43.045 espectadores), sem querer fazer futurologias é de esperar que Variações se aproxime ou ultrapasse os 100 000.
“Variações é uma homenagem a todos os que ainda hoje perseguem os seus sonhos aspirando a transformar as suas vidas.”
Sem grande margem para erro, Variações é um dos filmes do ano.